O Jogo da Oposição [Lado B] - Ficha

Leia o outro lado da história:
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Escrito por: Leonardo Paulino...

O JOGO DA OPOSIÇÃO - LADO B 

FICHA DE INSCRIÇÃO:

  Meu nome é Rafael, atualmente com 23 anos, os quais não foram os mais fáceis da minha vida.

  Viver em um lugar esquecido pelo mundo lhe faz sentir como o ser humano pode considerar seu semelhante como mero lixo.
A casa era pequena, feita de pedaços de madeira, a parte superior era coberta por pedaços de telhas e a chuva naquela época era nossa maior inimiga: inundações, tantas que perdi a conta de quantas vezes a água chegou a levar nossas coisas. Toda tempestade tinha um final trágico.
  Apesar da casa humilde e da falta de comida em algumas noites, o que mais mexia comigo e meu pobre irmão, com 4 anos na época, era o nosso pai, um bêbado barbudo que cheirava mal. Enquanto minha mãe saía cedo para trabalhar e trazer o sustento da casa, o desgraçado ficava o dia inteiro em bares enchendo a cara e arrumando confusão. Quando chegava em casa, nos agredia com sua fúria implacável e sem o menor motivo, os hematomas eram escondidos com camisetas surradas de mangas longas, e os que ficavam no rosto eram encobertos pelas mentiras.
  Todos sabiam a verdade, mas ninguém tomava uma atitude. Dessa forma maldita vivia dia após dia, esperando pelo momento em que finalmente poderia ser livre, poder levar minha mãe e meu irmãozinho para longe daquele desgraçado, espancamentos nunca mais.
  Apesar da minha estatura um pouco acima da média, meu corpo era franzino devido à má alimentação, meus cabelos eram quase que raspados, assim evitando o surgimento de piolhos, roupas compridas e chinelos velhos. Esse era o Rafael, aquele que os alunos zombavam pela altura, que me diminuíam por causa das minhas condições.
  O ódio era grande, ele crescia dentro de mim a cada dia, não entendia o porquê daquela vida miserável. "Teria eu feito algo em alguma vida passada e estou pagando por tudo isso agora?", pensava no silêncio da noite, isso quando não era interrompido com o desgraçado do meu pai agarrando minha mãe à força.
  Meus punhos se fechavam de ódio, queria matá-lo ali mesmo, com as minhas próprias mãos, mas era um garoto fraco, pelo menos naquele momento.
  Sugeri diversas vezes para minha mãe que fugíssemos, ela, todavia, dizia que não havia para onde ir, que tinha medo do meu pai ir atrás da gente com uma fúria maior ainda.
  E foi assim por longo 5 anos, meu irmão agora estava com 9 anos e eu tinha chegado aos 13. Em um dia chuvoso de novembro, mamãe preparava o jantar, era uma ocasião especial, os patrões dela haviam lhe dado alguns pedaços de carne, havia muito tempo que não comíamos algo assim.
  Nesse mesmo dia, um pouco mais tarde, chegara o estorvo que tinha de chamar de pai, batendo a porta com força e seu cheiro contamina o ar. Mesmo que estivesse todo molhado, ainda era possível sentir aquele fedor horrível, e todos estávamos fingindo que dormíamos, pelo menos assim as seções de espancamento não aconteceriam.
  Olhando as panelas enferrujadas que estavam em cima do fogão, doado por um dos vizinhos( sim, era assim que vivíamos, de favores, não era fácil para minha mãe sustentar a casa e pagar as dívidas de um cachaceiro.), ele vocifera, estava furioso, pois havíamos deixado para ele apenas poucos pedaços de carne. Era visível que com a barulheira, ele queria acordar minha mãe para poder começar a seção de espancamento.
  Estranhamente o silêncio volta a casa, e por debaixo da coberta mamãe fazia um sinal para que ficássemos calados. No entanto, aquilo estava estranho, conseguia ouvir o som do fogão ligado, estava aquecendo algo, provavelmente o velho teria se cansado de tentar fazer seu típico furdunço.
  Com passos calmos, o velho se aproxima da cama da minha mãe, silêncio, e em um movimento rápido, joga a água fervente que estava na panela em minha mãe. Gritos, sim, o desgraçado havia ficado quieto pois estava planejando fazer algo muito pior do que simplesmente nos espancar.

— Vai me dizer agora por que comeram toda a carne?! - Gritava ele, enquanto minha mãe se levantava com o corpo todo vermelho.

  Sua sorte era o cobertor, mas mesmo assim seu rosto lembrava um pimentão inchado, dos seus olhos saíam lágrimas de dor, de rancor e de remorso, lágrimas que somente nós iriamos ver. Em seguida o velho começa a espancá-la, e diferente das outras vezes ele não parava. Com socos e pontapés violentos, ele fazia minha mãe encolher em posição fetal, enquanto ele a massacrava não iria parar. Desta vez, com toda certeza, ele iria até o final. Os punhos fechados e um olhar cheio de misericórdia, como se estivesse pedindo desculpas para mim, como se ela estivesse pedindo perdão pela vida que nós levávamos. Os punhos se fecham mais ainda, nariz, costelas, contar as fraturas que estavam sendo feitas ali, naquele momento, seria algo difícil de digerir, ódio.
  Perdi o controle, avancei instintivamente contra o desgraçado, tentando lhe dar pontapés e socos. A pobre criança tola deveria ter usado a maldita faca, como me arrependo disso, com facilidade o bêbado desfere um soco, esse que acerta com tudo minha testa. O mundo roda à minha volta e despenco para trás.

—Você vai ser o próximo! É isso que você ensina aos seus filhos? – O desgraçado chuta violentamente a barriga da minha mãe, enquanto vomita essas palavras.

  Com os olhos inchados, boca partida e uma quantidade enorme de sangue saindo, ela me dá o último adeus. Eu via a tristeza nos seus olhos, mesmo atordoado conseguia ver, meus sentidos estavam voltando ao normal. Sua última gesticulação com a boca foi algo como um “fuja”, e naquele momento, naquele exato momento, ela sabia que não iria viver para ver um novo dia, estaria finalmente livre daquele inferno.
  Recobrando a consciência definitivamente, peguei meu irmãozinho e passamos correndo pela única porta, uma última olhada, e lá estava o desgraçado, mamãe já estava dormindo em um sono do qual ela nunca mais iria acordar.
  Correndo desesperadamente pelo chão lamacento feito pela chuva, minhas lágrimas eram omitidas, pelas pesadas gotas que batiam contra meu rosto. Meu irmão não entendia bem a situação, mas me seguia fielmente, tínhamos de procurar ajudar, seja onde fosse. Passando próximo ao córrego, diversos dejetos eram levados sem nenhuma sutileza, pensei que bem ali poderia estar o velho desgraçado, e não em casa terminando de matar minha mãe.
  Naquele momento, em meio à chuva e o caos da situação, tinha uma única certeza: a de que se aquele córrego teria levado algo, aquilo seria a minha alma.

Continua...

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