Noite Na Cabana


  Nada. Nenhum som. Nenhum som além do tilintar das gotas caindo sob as telhas da cabana, escorrendo para a calha e transbordando até cairem novamente e tocarem o chão. Eles estavam a minutos, quase horas, ouvindo isso... O sol chegara a dar lugar à lua desde que haviam chegado ali.

– Eu não aguento mais esperar! O que nos impede de ir embora daqui? – resmungou um homem barbudo, vestindo roupas maltrapilhas que aparentavam não ver água à uma semana, que segurava uma machadinha em uma das mãos.

– Se fugirmos estaremos condenando não só nossas vidas, mas as de todos do vilarejo! – respondeu outro homem, também encardido, mas com aparência de mais jovem que segurava um arco e flechas enquanto vigiava a janela da cabana.

– E qual é o problema disso? Eles não fariam o mesmo por nós!

– Seremos chamados de covardes! Estou aqui por minha filha, prefiro morrer do que vê-la crescer achando isso de mim! E também esse animal vai ter fome de novo, e se estiver vivo quando tiver, o que você acha que ele vai fazer? Ele vai atacar o vilarejo e sabe-se lá o tamanho do massacre que vai fazer!

– Fomos mandados para a morte! Você não vê? Nenhum dos outros voltaram. Eles estão alimentando esta coisa!

– É apenas um urso! Essa floresta é cheia deles... Você mesmo sabe, é de onde tiramos as peles que aquecem nossas camas e de nossas famílias à noite.

– Exato! Então porquê os outros não voltaram? Somos todos acostumados a caçar ursos, se fosse apenas um urso já teriam todos retornado.

– Shhhhh... Estou vendo alguma coisa... – disse o mais jovem, observando a floresta a poucos metros de distância da cabana pela janela enquanto já apontava o arco na direção do mato.

  No bréu da floresta, entre as árvores sacudidas pelo vendaval que acompanhava a chuva que castigava a região aquela noite, algo se mexia, espreitando a cabana pouco iluminada pelos lampiões dos dois homens.

– Então o que está esperando? Atire!

– E se for um dos nossos? Mal está dando para enxergar, apenas vi algo se mexer... – respondeu, com a mão ainda segurando a flecha mirada no possível alvo.

– Todos estão com medo dessa coisa. Você acha que alguém seria idiota de se arriscar vindo até aqui? Ande logo!

  O rapaz reflete, assente com a cabeça, redireciona seus olhos para o arvoredo, mas aquilo que era para ser seu alvo já havia sumido.

– Sumiu!

– O quê?

– A "coisa"... ela sumiu!

– É claro! Você fica perdendo tempo com suposições idiotas ao invés de atirar! Agora quero ver acharmos ele de novo... – resmungou o mais velho, empurrando o outro do lugar e metendo a cara na janela, numa tentativa inútil de tentar enxergar algo que pudesse estar na floresta.

– Eu vou até lá! – afirmou corajosamente o mais novo, pegando um dos lampiões, ajeitando seu arco e flechas e se preparando para sair.

– Você está louco! Nem sabemos o que é esta coisa...

  O jovem apenas deu as costas ao parceiro e se retirou da cabana, deixando-o sozinho.
  Enquanto caminhava em direção à floresta, os únicos sons que ouvira foram os de seus passos pisando hora e outra em galhos que haviam no meio do caminho e o chacoalhar das árvores por conta da chuvarada que assolava até mesmo seus sapatos.

  O amigo, que ainda se encontrava na cabana, apenas observava de longe a luz do lampião diminuindo, vendo ele sumir de vista à medida em que se aproximava da floresta. Não fôra louco o suficiente para seguir o companheiro até a morte.

  Quando estava a poucos metros da floresta, próximo a onde havia visto o que imaginava ser um urso, o corajoso rapaz avistou alguns arbustos se mexendo de maneira que era impossível ser apenas coisa do vento. Então, em outro ato de coragem, largou o lampião no chão e mirou uma flecha seguida de outra mato a frente.

  Certo de que havia acertado o alvo, ele correu até o lugar para a identificação do animal, imaginando que daria de cara com um urso morto e depois poderia zombar do amigo de como estava certo sobre que bicho foram enviados para caçar. Mas não foi bem isso o que ele encontrou.

  Ao conferir por detrás dos arbustos, o que o rapaz encontrou foi nada mais nada menos do que um humano coberto de flechas fincadas em seu corpo nu e ensanguentado. Mas notara algo diferente naquele homem que acabara de acertar, algo impossível de não se notar: seus ossos estavam retorcidos e pareciam estar se reposicionando nos lugares em que deveriam estar.

  Enquanto analisava intrigado ao homem morrendo, o rapaz não notara que algo extremamente grande se aproximava cada vez mais dele. Porém, a respiração forte e enfurecida da criatura começou a dar lugar a um rosnado constante e tornou-se impossível não olhar para trás e tremer de medo.

  Lá estava ela... sua tão almejada caça. Cuja não tinha nada haver com um urso ou qualquer outro animal que já havia caçado naquela floresta. Ela era grande, de uma pelugem negra; tinha olhos vermelhos, garras enormes e presas extremamente afiadas que destroçariam qualquer coisa.

  Sem nem ter tido tempo de apontar o arco, o rapaz teve sua cabeça arrancada com uma só mordida da fera cuja o marido recém matara. Como a água de uma fonte, sangue espirrou do pescoço do jovem enquanto a criatura atirava seu crânio para o meio da floresta. Aquilo definitivamente não era um urso... E a confirmação do que era se deu à o que fez a seguir.

  A fera se pôs de pé, bípede e proferiu um uivo agudo e alto como o de um lobo para dentro da floresta. E era isso, de fato, que ela era: uma loba... Uma lobisomem. Depois disso, se pôs novamente em sua forma quadrúpede e fez o óbvio: aproveitou da janta recém posta, destroçando o cadáver do rapaz recém morto e devorando sua carne pedaço por pedaço.

  Não muito longe dali, na cabana, depois de ouvir o uivo da fera, o segundo rapaz começou  a se preocupar com o amigo ter ido sozinho e decidiu ir até a floresta ver se o encontrava. Afinal, não queria ser acusado de ter matado o amigo caso ele sumisse como os outros que tentaram caçar aquele animal. Então pegou seu lampião, a machadinha e foi ao encontro do parceiro, atento ao escuro a fim de encontrá-lo através da luz de seu lampião.

  Não encontrou nada, então adentrou a floresta, seguindo até finalmente avistar uma luz no meio dela. Quando avistou, não pensou duas vezes e a seguiu, chamando o nome do amigo pensando ser ele carregando o lampião e achando que podia lhe ouvir. Mas quem lhe ouviu, obviamente, foi a fera, que largou a carne fresca do rapaz recém morto e se pôs na direção do outro recém chegado.

  Ao ver os restos do corpo do amigo de longe ao lado daquela criatura enorme, o rapaz não pensou duas vezes e atirou seu lampião na direção do lobisomem, correndo o mais rápido que podia em direção à saída da floresta. Com uma fúria clara e aparente sede sangue, o "animal" disparou logo atrás, destacando-se na escuridão do bosque por meio de seus olhos vermelho-rubro.

  Quando o rapaz conseguiu sair da floresta e chegou a uma área aberta, uma flecha misteriosamente acertou sua perna esquerda, fazendo-o cair de joelhos no chão, sangrando enquanto o monstro corria em sua direção. E a medida em que a fera se aproximava, em sua mente, em uma lembrança quase que podia ouvir; escutava repetidamente sua própria voz:
“Fomos mandados para a morte!”
“Nenhum dos outros voltaram.”
“Eles estão alimentando esta coisa!”
“Eles estão alimentando esta coisa!”
“Fomos mandados para a morte!”
“Fomos mandados para a morte!”

– Fomos mandados para a morte... – concluiu em baixo som, com a fera já na sua frente e saliva gosmenta e sangue do amigo pingando sob sua cabeça.

  Enquanto o lobisomem estava distraído destroçando o rapaz ainda vivo, dois homens velhos (os mais velhos da vila) segurando arcos e flechas cochichavam entre si:

– Ele está alimentado por hoje. Devemos decidir quem mandar para cá amanhã. Pelos deuses! Me sinto um monstro por estar dizendo isso!

– Eu sei. Mas isso tudo é pelo bem da nossa aldeia. Sempre foi pelo bem da nossa aldeia...
... por todos esses anos.



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